O que e como ensinar?
Um dos maiores dilemas
dos jovens da geração internet envolve como conciliar a velocidade do mundo
tecnológico e sua atenção fragmentada com o tempo do pensamento reflexivo e
analítico. Para esses jovens estudantes, que vivem num mundo mais prático e
ágil, é natural a pergunta "Para que serve a filosofia?"
Em Ensinar
Filosofia: um livro para professores (Atta Mídia e Educação), os
professores Renata Lima Aspis e Sílvio Gallo, da Unicamp, partem da constatação
de que a filosofia é a disciplina mais indicada para responder às dificuldades
dos jovens de se expressarem com apuro, de forma crítica e independente.
Trocando em miúdos, a filosofia na sala de aula é importante para organizar as
ideias e desenvolver uma postura mais ativa perante o mundo, fatores essenciais
para formar cidadãos ao invés de meros consumidores.
Mas como ensinar
filosofia? Esta é uma questão antiga entre acadêmicos, ainda mais para uma disciplina
vista (erroneamente) como uma cansativa exposição de ilustres mortos que
escreveram textos obscuros e desenvolveram pensamentos muito abstratos,
desconexos com a realidade. O mérito dos autores, e do livro em particular, é
apostar numa visão mais pragmática sobre o assunto. Para eles, a filosofia não
pode se furtar de seu compromisso com a realidade e, como aprendizado, deve
procurar estabelecer um diálogo com o cotidiano dos alunos.
Da teoria à prática
De forma clara e
didática, os argumentos são ordenados em duas partes: "O que
Ensinar?" e "Como Ensinar?". Na primeira parte, os autores
apresentam o objetivo de ensinar não uma disciplina, entendida como corpo de
saberes constituídos, mas oferecer aos jovens a filosofia como experiência.
Para isso, o professor deve ir além da exposição histórica de nomes, correntes
e escolas de pensamento, que pouco de proveitoso traz aos alunos. E também não
pode se prender à mera discussão de tópicos, à maneira socrática.
O que orienta o
conteúdo das aulas é uma perspectiva baseada na filosofia francesa
contemporânea, mais especificamente a obra de Gilles Deleuze (1925-1995), que
entende a filosofia como atividade de criação (e uso prático) de conceitos. Os
alunos devem ser habilitados, portanto, a empregar o pensamento, os conceitos,
para analisar e interferir criticamente no mundo.
Mas como fazer isso na
prática? Como trazer conceitos abstratos para o dia-a-dia dos estudantes? A
segunda parte do livro é dedicada, assim, à discussão de um método de ensino.
A estratégia consiste
em problematizar determinados temas escolhidos para trabalhar em sala de aula.
Para alunos que nunca tiveram contato com filosofia, textos de autores como
Platão, Kant ou Nietzsche podem parecer, à primeira vista, um conjunto de
frases sem sentido, como se os filósofos professassem um conhecimento
esotérico. Em boa parte das vezes, isso acontece em razão do desconhecimento
dos problemas com os quais eles estavam lidando. Os conceitos nada mais são do
que ferramentas e soluções criativas para se resolver problemas atemporais,
como questões referentes à descoberta da verdade, o comportamento ético ou os
gostos estéticos.
Ao se escolher um tema
específico, a ética, por exemplo, a proposta é o professor delimitar, junto aos
alunos, um problema. "O homem possui livre-arbítrio?", digamos. A
questão servirá de porta de entrada aos textos filosóficos e à história da
filosofia. A partir da problematização, os alunos iriam investigar como
filósofos, antigos ou modernos, trataram da questão.
Uma manobra inteligente
para atrair a atenção dos alunos, antes mesmo de fazer o recorte temático, é
sensibilizar os jovens, o que pode ser feito por meio de músicas ou filmes
(para o problema do livre-arbítrio, por exemplo, filmes como "Minority
Report - A Nova Lei" ou "Matrix").
Leituras
O "Como
ensinar?", deste modo, tem como primeira etapa a sensibilização, seguida
da problematização. O próximo passo, de acordo com os autores, envolve o estudo
de textos filosóficos e a produção de ensaios pelos alunos. Mas será que adolescentes
do Ensino Médio teriam repertório para enfrentar textos como
"Metafísica", de Aristóteles, "Discurso Sobre o Método", de
Descartes, ou "Crítica da Razão Pura", de Kant?
Uma coisa é certa: não
se aprende filosofia prescindindo do confronto com os textos originais, com as
fontes primárias. Pode parecer algo óbvio, mas é comum ver professores, na
busca de melhores mediadores em sala de aula, recorrerem a manuais do tipo "O
Mundo de Sofia", best-seller de Jostein Gaarder dos anos
1990. E ficarem nisso.
O que Renata Aspis e
Sílvio Gallo propõem é que os alunos não somente leiam os textos dos próprios
filósofos como também façam isso, inicialmente, sem qualquer aula expositiva ou
material de apoio de comentadores. Segundo eles, "O texto assim explorado
é mediador da relação professor/aluno, não se servirá ao papel de instrumento
de poder. Então, aqui mais uma vez a filosofia é inauguração, é retorno, é
atitude de aprendiz que está sempre tendo de recomeçar, para os alunos e para
os professores." (p. 95).
Somente após esse
primeiro contato terão lugar as aulas expositivas, que contextualizarão as
obras dentro da história da filosofia.
A quarta e última etapa
do método de ensino consiste na escrita de textos pelos alunos, de modo que
empreguem conceitos para trabalhar problemas filosóficos. Leitura e escritas
filosóficas, assim, consistem a verdadeira prática de filosofia, muito além do
"decoreba" de nomes, conceitos, escolas, e pensamentos que tornam a
disciplina algo tão distante para os jovens quanto a Grécia de Platão e
Aristóteles, quando, na verdade, estamos mais próximos que imaginamos.
Ensinar Filosofia traz
ainda uma discussão indireta e mais ampla sobre o próprio papel da educação nos
dias hoje, engessada em modelos burocráticos que cada vez mais distanciam a
escola das gerações hipermidiáticas. O livro discute como posicionar a
filosofia politicamente em um contexto de dispersão, ausência de valores e de
pensamento crítico, e também debate o próprio papel da educação nos dias
atuais. O novo "chip" da escola, afinal de contas, pode ser tão velho
quanto os pré-socráticos.
Ensinar Filosofia: um
livro para professores
Renata Lima Aspis e
Sílvio Gallo
Atta Mídia e Educação
100 págs.
Fonte: é
jornalista e professor universitário.
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