domingo, 17 de agosto de 2014

FILOSOFIA NA SALA DE AULA - JOSÉ RENATO SALATIEL

O que e como ensinar?

Um dos maiores dilemas dos jovens da geração internet envolve como conciliar a velocidade do mundo tecnológico e sua atenção fragmentada com o tempo do pensamento reflexivo e analítico. Para esses jovens estudantes, que vivem num mundo mais prático e ágil, é natural a pergunta "Para que serve a filosofia?"

Em Ensinar Filosofia: um livro para professores (Atta Mídia e Educação), os professores Renata Lima Aspis e Sílvio Gallo, da Unicamp, partem da constatação de que a filosofia é a disciplina mais indicada para responder às dificuldades dos jovens de se expressarem com apuro, de forma crítica e independente. Trocando em miúdos, a filosofia na sala de aula é importante para organizar as ideias e desenvolver uma postura mais ativa perante o mundo, fatores essenciais para formar cidadãos ao invés de meros consumidores.

Mas como ensinar filosofia? Esta é uma questão antiga entre acadêmicos, ainda mais para uma disciplina vista (erroneamente) como uma cansativa exposição de ilustres mortos que escreveram textos obscuros e desenvolveram pensamentos muito abstratos, desconexos com a realidade. O mérito dos autores, e do livro em particular, é apostar numa visão mais pragmática sobre o assunto. Para eles, a filosofia não pode se furtar de seu compromisso com a realidade e, como aprendizado, deve procurar estabelecer um diálogo com o cotidiano dos alunos.

Da teoria à prática

De forma clara e didática, os argumentos são ordenados em duas partes: "O que Ensinar?" e "Como Ensinar?". Na primeira parte, os autores apresentam o objetivo de ensinar não uma disciplina, entendida como corpo de saberes constituídos, mas oferecer aos jovens a filosofia como experiência. Para isso, o professor deve ir além da exposição histórica de nomes, correntes e escolas de pensamento, que pouco de proveitoso traz aos alunos. E também não pode se prender à mera discussão de tópicos, à maneira socrática.

O que orienta o conteúdo das aulas é uma perspectiva baseada na filosofia francesa contemporânea, mais especificamente a obra de Gilles Deleuze (1925-1995), que entende a filosofia como atividade de criação (e uso prático) de conceitos. Os alunos devem ser habilitados, portanto, a empregar o pensamento, os conceitos, para analisar e interferir criticamente no mundo.

Mas como fazer isso na prática? Como trazer conceitos abstratos para o dia-a-dia dos estudantes? A segunda parte do livro é dedicada, assim, à discussão de um método de ensino.

A estratégia consiste em problematizar determinados temas escolhidos para trabalhar em sala de aula. Para alunos que nunca tiveram contato com filosofia, textos de autores como Platão, Kant ou Nietzsche podem parecer, à primeira vista, um conjunto de frases sem sentido, como se os filósofos professassem um conhecimento esotérico. Em boa parte das vezes, isso acontece em razão do desconhecimento dos problemas com os quais eles estavam lidando. Os conceitos nada mais são do que ferramentas e soluções criativas para se resolver problemas atemporais, como questões referentes à descoberta da verdade, o comportamento ético ou os gostos estéticos.

Ao se escolher um tema específico, a ética, por exemplo, a proposta é o professor delimitar, junto aos alunos, um problema. "O homem possui livre-arbítrio?", digamos. A questão servirá de porta de entrada aos textos filosóficos e à história da filosofia. A partir da problematização, os alunos iriam investigar como filósofos, antigos ou modernos, trataram da questão.

Uma manobra inteligente para atrair a atenção dos alunos, antes mesmo de fazer o recorte temático, é sensibilizar os jovens, o que pode ser feito por meio de músicas ou filmes (para o problema do livre-arbítrio, por exemplo, filmes como "Minority Report - A Nova Lei" ou "Matrix").

Leituras

O "Como ensinar?", deste modo, tem como primeira etapa a sensibilização, seguida da problematização. O próximo passo, de acordo com os autores, envolve o estudo de textos filosóficos e a produção de ensaios pelos alunos. Mas será que adolescentes do Ensino Médio teriam repertório para enfrentar textos como "Metafísica", de Aristóteles, "Discurso Sobre o Método", de Descartes, ou "Crítica da Razão Pura", de Kant?

Uma coisa é certa: não se aprende filosofia prescindindo do confronto com os textos originais, com as fontes primárias. Pode parecer algo óbvio, mas é comum ver professores, na busca de melhores mediadores em sala de aula, recorrerem a manuais do tipo "O Mundo de Sofia", best-seller de Jostein Gaarder dos anos 1990. E ficarem nisso.

O que Renata Aspis e Sílvio Gallo propõem é que os alunos não somente leiam os textos dos próprios filósofos como também façam isso, inicialmente, sem qualquer aula expositiva ou material de apoio de comentadores. Segundo eles, "O texto assim explorado é mediador da relação professor/aluno, não se servirá ao papel de instrumento de poder. Então, aqui mais uma vez a filosofia é inauguração, é retorno, é atitude de aprendiz que está sempre tendo de recomeçar, para os alunos e para os professores." (p. 95).

Somente após esse primeiro contato terão lugar as aulas expositivas, que contextualizarão as obras dentro da história da filosofia.

A quarta e última etapa do método de ensino consiste na escrita de textos pelos alunos, de modo que empreguem conceitos para trabalhar problemas filosóficos. Leitura e escritas filosóficas, assim, consistem a verdadeira prática de filosofia, muito além do "decoreba" de nomes, conceitos, escolas, e pensamentos que tornam a disciplina algo tão distante para os jovens quanto a Grécia de Platão e Aristóteles, quando, na verdade, estamos mais próximos que imaginamos.

Ensinar Filosofia traz ainda uma discussão indireta e mais ampla sobre o próprio papel da educação nos dias hoje, engessada em modelos burocráticos que cada vez mais distanciam a escola das gerações hipermidiáticas. O livro discute como posicionar a filosofia politicamente em um contexto de dispersão, ausência de valores e de pensamento crítico, e também debate o próprio papel da educação nos dias atuais. O novo "chip" da escola, afinal de contas, pode ser tão velho quanto os pré-socráticos.

 
Ensinar Filosofia: um livro para professores
Renata Lima Aspis e Sílvio Gallo
Atta Mídia e Educação
100 págs.

Fonte: é jornalista e professor universitário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário