O DESENVOLVIMENTO HUMANO NA TEORIA DE PIAGET
Márcia Regina Terra
APRESENTAÇÃO
O estudo do desenvolvimento do ser humano constitui uma área
do conhecimento da Psicologia cujas proposições nucleares concentram-se no
esforço de compreender o homem em todos os seus aspectos, englobando fases
desde o nascimento até o seu mais completo grau de maturidade e estabilidade.
Tal esforço, conforme mostra a linha
evolutiva da Psicologia, tem culminado na elaboração de várias teorias que
procuram reconstituir, a partir de diferentes metodologias e pontos de vistas,
as condições de produção da representação do mundo e de suas vinculações com as
visões de mundo e de homem dominantes em cada momento histórico da sociedade.
Dentre essas teorias, a de Jean Piaget (1896-1980), que é a
referência deste nosso trabalho, não foge à regra, na medida em que ela busca,
como as demais, compreender o desenvolvimento do ser humano. No entanto, ela se
destaca de outras pelo seu caráter inovador quando introduz uma 'terceira
visão' representada pela linha interacionista que constitui uma tentativa de
integrar as posições dicotômicas de duas tendências teóricas que permeiam a
Psicologia em geral - o materialismo mecanicista e o idealismo - ambas marcadas
pelo antagonismo inconciliável de seus postulados que separam de forma estanque
o físico e o psíquico.
Um outro ponto importante a ser considerado, segundo
estudiosos, é o de que o modelo piagetiano prima pelo rigor científico de sua produção, ampla
e consistente ao longo de 70 anos, que trouxe contribuições práticas importantes,
principalmente, ao campo da Educação - muito embora, curiosamente aliás, a
intenção de Piaget não tenha propriamente incluído a idéia de formular uma
teoria específica de aprendizagem (La Taille, 1992; Rappaport, 1981; Furtado
et. al.,1999; Coll, 1992; etc.).
O propósito do nosso estudo, portanto, é tecer algumas
considerações referidas ao eixo principal em torno do qual giram as concepções
do método psicogenético de Piaget, o qual, segundo Coll e Gillièron (1987:30),
tem como objetivo "compreender como o sujeito se constitui enquanto sujeito
cognitivo, elaborador de conhecimentos válidos", conforme procuraremos
discutir na seqüência deste trabalho.
1) A VISÃO INTERACIONISTA DE PIAGET: A RELAÇÃO DE
INTERDEPENDÊNCIA ENTRE O HOMEM E O OBJETO DO CONHECIMENTO
Introduzindo uma terceira visão teórica representada pela
linha interacionista, as idéias de Piaget contrapõem-se, conforme mencionamos
mais acima, às visões de duas correntes
antagônicas e inconciliáveis que permeiam a Psicologia em geral: o objetivismo
e o subjetivismo. Ambas as correntes são derivadas de duas grandes vertentes da
Filosofia (o idealismo e o materialismo mecanicista) que, por sua vez, são
herdadas do dualismo radical de Descartes que propôs a separação estanque entre
corpo e alma, id est, entre físico e psíquico. Assim sendo, a Psicologia
objetivista, privilegia o dado externo, afirmando que todo conhecimento provém
da experiência; e a Psicologia subjetivista, em contraste, calcada no substrato
psíquico, entende que todo conhecimento é anterior à experiência, reconhecendo,
portanto, a primazia do sujeito sobre o objeto (Freitas, 2000:63).
Considerando insuficientes essas duas posições para explicar
o processo evolutivo da filogenia humana, Piaget formula o conceito de
epigênese, argumentando que "o conhecimento não procede nem da experiência
única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de
construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas"
(Piaget, 1976 apud Freitas 2000:64). Quer dizer, o processo evolutivo da filogenia
humana tem uma origem biológica que é ativada pela ação e interação do
organismo com o meio ambiente - físico e social - que o rodeia (Coll, 1992; La
Taille, 1992, 2003; Freitas, 2000;
etc.), significando entender com isso que as formas primitivas da mente,
biologicamente constituídas, são reorganizadas pela psique socializada, ou
seja, existe uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o
objeto a conhecer.
Esse processo, por
sua vez, se efetua através de um mecanismo auto-regulatório que consiste no
processo de equilíbração progressiva do organismo com o meio em que o indivíduo
está inserido, como procuraremos expor em seguida.
2) O PROCESSO DE EQUILIBRAÇÃO: A MARCHA DO ORGANISMO EM
BUSCA DO PENSAMENTO LÓGICO
Pode-se dizer que o "sujeito epistêmico"
protagoniza o papel central do modelo piagetiano, pois a grande preocupação da
teoria é desvendar os mecanismos processuais do pensamento do homem, desde o
início da sua vida até a idade adulta. Nesse sentido, a compreensão dos mecanismos de constituição
do conhecimento, na concepção de Piaget, equivale à compreensão dos mecanismos
envolvidos na formação do pensamento lógico, matemático. Como lembra La Taille
(1992:17), "(...) a lógica representa para Piaget a forma final do
equilíbrio das ações. Ela é 'um sistema de operações, isto é, de ações que se
tornaram reversíveis e passíveis de serem compostas entre si'".
Precipuamente,
portanto, no método psicogenético, o 'status' da lógica matemática perfaz o
enigma básico a ser desvendado. O maior problema, nesse sentido, concentra-se
na busca de respostas pertinentes para uma questão fulcral: "Como os
homens constróem o conhecimento?" (La Taille: vídeo). Imbricam-se nessa
questão, naturalmente, outras indagações afins, quer sejam: como é que a lógica
passa do nível elementar para o nível superior? Como se dá o processo de
elaboração das idéias? Como a elaboração do conhecimento influencia a adaptação
à realidade? Etc.
Procurando soluções para esse problema central, Piaget
sustenta que a gênese do conhecimento está no próprio sujeito, ou seja, o
pensamento lógico não é inato ou tampouco externo ao organismo mas é
fundamentalmente construído na interação homem-objeto. Quer dizer, o
desenvolvimento da filogenia humana se dá através de um mecanismo
auto-regulatório que tem como base um 'kit' de condições biológicas (inatas
portanto), que é ativado pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social
(Rappaport, op.cit.). Id est, tanto a experiência sensorial quanto o raciocínio
são fundantes do processo de constituição da inteligência, ou do pensamento
lógico do homem.
Está implícito nessa ótica de Piaget que o homem é possuidor de uma estrutura
biológica que o possibilita desenvolver o mental, no entanto, esse fato per se não assegura o
desencadeamento de fatores que propiciarão o seu desenvolvimento, haja vista
que este só acontecerá a partir da interação do sujeito com o objeto a
conhecer. Por sua vez, a relação com o objeto, embora essencial, da mesma forma
também não é uma condição suficiente ao desenvolvimento cognitivo humano, uma
vez que para tanto é preciso, ainda, o exercício do raciocínio. Por assim
dizer, a elaboração do pensamento lógico demanda um processo interno de
reflexão. Tais aspectos deixam à mostra que, ao tentar descrever a origem da
constituição do pensamento lógico, Piaget focaliza o processo interno dessa
construção.
Simplificando ao máximo, o desenvolvimento humano, no modelo
piagetiano, é explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de
relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer.
Esses fatores que são complementares envolvem mecanismos bastante complexos e
intrincados que englobam o entrelaçamento de fatores que são complementares, tais
como: o processo de maturação do organismo, a experiência com objetos, a
vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio.
O conceito de equilibração torna-se especialmente marcante
na teoria de Piaget pois ele representa o fundamento que explica todo o
processo do desenvolvimento humano. Trata-se de um fenômeno que tem, em sua
essência, um caráter universal, já que é de igual ocorrência para todos os
indivíduos da espécie humana mas que pode sofrer variações em função de
conteúdos culturais do meio em que o indivíduo está inserido. Nessa linha de
raciocínio, o trabalho de Piaget leva em conta a atuação de 2 elementos básicos ao desenvolvimento
humano: os fatores invariantes e os fatores variantes.
(a) Os fatores invariantes:
Piaget postula que, ao nascer, o indivíduo recebe como herança uma série
de estruturas biológicas - sensoriais e neurológicas - que permanecem
constantes ao longo da sua vida. São essas estruturas biológicas que irão
predispor o surgimento de certas estruturas mentais. Em vista disso, na linha
piagetiana, considera-se que o indivíduo carrega consigo duas marcas inatas que
são a tendência natural à organização e à adaptação, significando entender,
portanto, que, em última instância, o
'motor' do comportamento do homem é inerente ao ser.
(b) Os fatores variantes: são representados pelo conceito de
esquema que constitui a unidade básica de pensamento e ação estrutural do
modelo piagetiano, sendo um elemento que se tranforma no processo de interação
com o meio, visando à adaptação do indivíduo ao real que o circunda. Com isso,
a teoria psicogenética deixa à mostra que a inteligência não é herdada, mas sim
que ela é construída no processo interativo entre o homem e o meio ambiente
(físico e social) em que ele estiver inserido.
Em síntese, pode-se dizer que, para Piaget, o equilíbrio é o
norte que o organismo almeja mas que paradoxalmente nunca alcança (La Taille,
op.cit.), haja vista que no processo de interação podem ocorrer desajustes do
meio ambiente que rompem com o estado de equilíbrio do organismo, eliciando
esforços para que a adaptação se restabeleça. Essa busca do organismo por novas
formas de adaptação envolvem dois mecanismos que apesar de distintos são
indissociáveis e que se complementam: a assimilação e a acomodação.
(a) A assimilação consiste na tentativa do indivíduo em
solucionar uma determinada situação a partir da estrutura cognitiva que ele
possui naquele momento específico da sua existência. Representa um processo
contínuo na medida em que o indivíduo está em constante atividade de
interpretação da realidade que o rodeia e, consequentemente, tendo que se
adaptar a ela. Como o processo de assimilação representa sempre uma tentativa
de integração de aspectos experienciais aos esquemas previamente estruturados,
ao entrar em contato com o objeto do conhecimento o indivíduo busca retirar
dele as informações que lhe interessam deixando outras que não lhe são tão
importantes (La Taille, vídeo), visando sempre a restabelecer a equilibração do
organismo.
(b) A acomodação, por sua vez, consiste na capacidade de modificação da
estrutura mental antiga para dar conta de dominar um novo objeto do
conhecimento. Quer dizer, a acomodação representa "o momento da ação do objeto
sobre o sujeito" (Freitas, op.cit.:65) emergindo, portanto, como o
elemento complementar das interações sujeito-objeto. Em síntese, toda experiência é assimilada a
uma estrutura de idéias já existentes (esquemas) podendo provocar uma
transformação nesses esquemas, ou seja, gerando um processo de acomodação. Como
observa Rappaport (1981:56),
os processos de assimilação e
acomodação são complementares e acham-se presentes durante toda a vida do
indivíduo e permitem um estado de adaptação intelectual (...) É muito difícil,
se não impossível, imaginar uma situação em que possa ocorrer assimilação sem
acomodação, pois dificilmente um objeto é igual a outro já conhecido, ou uma
situação é exatamente igual a outra.
Vê-se nessa idéia de "equilibração" de Piaget a
marca da sua formação como Biólogo que o levou a traçar um paralelo entre a
evolução biológica da espécie e as construções cognitivas. Tal processo pode
ser representado pelo seguinte quadro:
Dessa perspectiva, o processo de equilibração pode ser
definido como um mecanismo de organização de estruturas cognitivas em um
sistema coerente que visa a levar o indivíduo a construção de uma forma de
adaptação à realidade. Haja vista que o "objeto nunca se deixa compreender
totalmente" (La Taille, op.cit.), o conceito de equilibração sugere algo
móvel e dinâmico, na medida em que a constituição do conhecimento coloca o
indivíduo frente a conflitos cognitivos constantes que movimentam o organismo
no sentido de resolvê-los. Em última instância, a concepção do desenvolvimento
humano, na linha piagetiana, deixa ver que é no contato com o mundo que a
matéria bruta do conhecimento é 'arrecadada', pois que é no processo de
construções sucessivas resultantes da relação sujeito-objeto que o indivíduo
vai formar o pensamento lógico.
É bom considerar, ainda, que, na medida em que toda
experiência leva em graus diferentes a um processo de assimilação e acomodação,
trata-se de entender que o mundo das idéias, da cognição, é um mundo
inferencial. Para avançar no desenvolvimento é preciso que o ambiente promova
condições para transformações cognitivas, id est, é necessário que se estabeleça um conflito
cognitivo que demande um esforço do indivíduo para superá-lo a fim de que o
equilíbrio do organismo seja restabelecido, e assim sucessivamente.
No entanto, esse
processo de transformação vai depender sempre de como o indivíduo vai elaborar
e assimilar as suas interações com o meio, isso porque a visada conquista da
equilibração do organismo reflete as elaborações possibilitadas pelos níveis de
desenvolvimento cognitivo que o organismo detém nos diversos estágios da sua
vida. A esse respeito, para Piaget, os modos de relacionamento com a realidade
são divididos em 4 períodos, como destacaremos na próxima seção deste trabalho.
3) OS ESTÁGIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Piaget considera 4 períodos no processo evolutivo da espécie
humana que são caracterizados "por aquilo que o indivíduo consegue fazer
melhor" no decorrer das diversas faixas etárias ao longo do seu processo
de desenvolvimento (Furtado, op.cit.). São eles:
1º período: Sensório-motor (0 a 2 anos)
2º período: Pré-operatório (2 a 7 anos)
3º período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos)
4º período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante)
Cada uma dessas fases é caracterizada por formas diferentes
de organização mental que possibilitam as diferentes maneiras do indivíduo
relacionar-se com a realidade que o rodeia (Coll e Gillièron, 1987). De uma
forma geral, todos os indivíduos vivenciam essas 4 fases na mesma seqüência,
porém o início e o término de cada uma delas pode sofrer variações em função
das características da estrutura biológica de cada indivíduo e da riqueza (ou
não) dos estímulos proporcionados pelo meio ambiente em que ele estiver
inserido. Por isso mesmo é que "a divisão nessas faixas etárias é uma
referência, e não uma norma rígida", conforme lembra Furtado (op.cit.).
Abordaremos, a seguir, sem entrar em uma descrição detalhada, as principais
características de cada um desses períodos.
(a) Período Sensório-motor (0 a 2 anos): segundo La Taille
(2003), Piaget usa a expressão "a passagem do caos ao cosmo" para
traduzir o que o estudo sobre a construção do real descreve e explica. De
acordo com a tese piagetiana, "a criança nasce em um universo para ela
caótico, habitado por objetos evanescentes (que desapareceriam uma vez fora do
campo da percepção), com tempo e espaço subjetivamente sentidos, e causalidade
reduzida ao poder das ações, em uma forma de onipotência" (id ibid). No
recém nascido, portanto, as funções mentais limitam-se ao exercício dos
aparelhos reflexos inatos. Assim sendo, o universo que circunda a criança é
conquistado mediante a percepção e os movimentos (como a sucção, o movimento
dos olhos, por exemplo).
Progressivamente, a criança vai aperfeiçoando tais
movimentos reflexos e adquirindo habilidades e chega ao final do período sensório-motor
já se concebendo dentro de um cosmo "com objetos, tempo, espaço,
causalidade objetivados e solidários, entre os quais situa a si mesma como um
objeto específico, agente e paciente dos eventos que nele ocorrem" (id
ibid).
(b) Período pré-operatório (2 a 7 anos): para Piaget, o que
marca a passagem do período sensório-motor para o pré-operatório é o
aparecimento da função simbólica ou semiótica, ou seja, é a emergência da
linguagem. Nessa concepção, a inteligência é anterior à emergência da linguagem
e por isso mesmo "não se pode atribuir à linguagem a origem da lógica, que
constitui o núcleo do pensamento racional" (Coll e Gillièron, op.cit.). Na
linha piagetiana, desse modo, a linguagem é considerada como uma condição
necessária mas não suficiente ao desenvolvimento, pois existe um trabalho de
reorganização da ação cognitiva que não é dado pela linguagem, conforme alerta
La Taille (1992). Em uma palavra, isso implica entender que o desenvolvimento
da linguagem depende do desenvolvimento da inteligência.
Todavia, conforme demonstram as pesquisas psicogenéticas (La
Taille, op.cit.; Furtado, op.cit., etc.), a emergência da linguagem acarreta
modificações importantes em aspectos cognitivos, afetivos e sociais da criança,
uma vez que ela possibilita as interações
interindividuais e fornece,
principalmente, a capacidade de trabalhar com representações para atribuir
significados à realidade. Tanto é assim, que a aceleração do alcance do
pensamento neste estágio do desenvolvimento, é atribuída, em grande parte, às
possibilidades de contatos interindividuais fornecidos pela linguagem.
Contudo, embora o alcance do pensamento apresente
transformações importantes, ele
caracteriza-se, ainda, pelo egocentrismo, uma vez que a criança não
concebe uma realidade da qual não faça parte, devido à ausência de esquemas
conceituais e da lógica. Para citar um exemplo pessoal relacionado à questão,
lembro-me muito bem que me chamava à atenção o fato de, nessa faixa etária, o
meu filho dizer coisas do tipo "o meu carro do meu pai", sugerindo,
portanto, o egocentrismo característico desta fase do desenvolvimento. Assim,
neste estágio, embora a criança apresente a capacidade de atuar de forma lógica
e coerente (em função da aquisição de esquemas sensoriais-motores na fase
anterior) ela apresentará, paradoxalmente, um entendimento da realidade
desequilibrado (em função da ausência de esquemas conceituais), conforme
salienta Rappaport (op.cit.).
(c) Período das
operações concretas (7 a 11, 12 anos): neste período o egocentrismo intelectual
e social (incapacidade de se colocar no ponto de vista de outros) que
caracteriza a fase anterior dá lugar à emergência da capacidade da criança de
estabelecer relações e coordenar pontos de vista diferentes (próprios e de outrem ) e de integrá-los de
modo lógico e coerente (Rappaport, op.cit.). Um outro aspecto importante neste
estágio refere-se ao aparecimento da capacidade da criança de interiorizar as
ações, ou seja, ela começa a realizar operações mentalmente e não mais apenas
através de ações físicas típicas da inteligência sensório-motor (se lhe
perguntarem, por exemplo, qual é a vareta maior, entre várias, ela será capaz
de responder acertadamente comparando-as mediante a ação mental, ou seja, sem
precisar medi-las usando a ação física).
Contudo, embora a
criança consiga raciocinar de forma coerente, tanto os esquemas conceituais
como as ações executadas mentalmente se referem, nesta fase, a objetos ou
situações passíveis de serem manipuladas ou imaginadas de forma concreta. Além
disso, conforme pontua La Taille (1992:17) se no período pré-operatório a
criança ainda não havia adquirido a capacidade de reversibilidade, i.e.,
"a capacidade de pensar simultaneamente o estado inicial e o estado final
de alguma transformação efetuada sobre os objetos (por exemplo, a ausência de
conservação da quantidade quando se transvaza o conteúdo de um copo A para
outro B, de diâmetro menor)", tal reversibilidade será construída ao longo
dos estágios operatório concreto e formal.
(d) Período das operações formais (12 anos em diante): nesta
fase a criança, ampliando as capacidades conquistadas na fase anterior, já
consegue raciocinar sobre hipóteses na medida em que ela é capaz de formar
esquemas conceituais abstratos e através deles executar operações mentais
dentro de princípios da lógica formal. Com isso, conforme aponta Rappaport (op.cit.:74)
a criança adquire "capacidade de criticar os sistemas sociais e propor
novos códigos de conduta: discute valores morais de seus pais e contrói os seus
próprios (adquirindo, portanto, autonomia)".
De acordo com a tese piagetiana, ao atingir esta fase, o
indivíduo adquire a sua forma final de equilíbrio, ou seja, ele consegue
alcançar o padrão intelectual que persistirá durante a idade adulta. Isso não
quer dizer que ocorra uma estagnação das funções cognitivas, a partir do ápice
adquirido na adolescência, como enfatiza Rappaport (op.cit.:63), "esta
será a forma predominante de raciocínio utilizada pelo adulto. Seu
desenvolvimento posterior consistirá numa ampliação de conhecimentos tanto em
extensão como em profundidade, mas não na aquisição de novos modos de
funcionamento mental".
Cabe-nos problematizar as considerações anteriores de
Rappaport, a partir da seguinte reflexão: resultados de pesquisas* têm indicado
que adultos "pouco-letrados/escolarizados" apresentam modo de
funcionamento cognitivo "balizado pelas informações provenientes de dados
perceptuais, do contexto concreto e da experiência pessoal" (Oliveira,
2001a:148). De acordo com os pressupostos da teoria de Piaget, tais adultos
estariam, portanto, no estágio operatório-concreto, ou seja, não teriam
alcançado, ainda, o estágio final do desenvolvimento que caracteriza o
funcionamento do adulto (lógico-formal). Como é que tais adultos
(operatório-concreto) poderiam, ainda, adquirir condições de ampliar e
aprofundar conhecimentos (lógico-formal) se não lhes é reservada, de acordo com
a respectiva teoria, a capacidade de desenvolver "novos modos de
funcionamento mental"? - aliás, de acordo com a teoria, não dependeria do
desenvolvimento da estrutura cognitiva a capacidade de desenvolver o pensamento
descontextualizado?
Bem, retomando a nossa discussão, vale ressaltar, ainda,
que, para Piaget, existe um desenvolvimento da moral que ocorre por etapas, de
acordo com os estágios do desenvolvimento humano. Para Piaget (1977 apud La
Taille 1992:21), "toda moral consiste num sistema de regras e a essência
de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por
estas regras". Isso porque Piaget entende que nos jogos coletivos as
relações interindividuais são regidas por normas que, apesar de herdadas
culturalmente, podem ser modificadas consensualmente entre os jogadores, sendo
que o dever de 'respeitá-las' implica a moral por envolver questões de justiça
e honestidade.
Assim sendo, Piaget argumenta que o desenvolvimento da moral
abrange 3 fases: (a) anomia (crianças até 5 anos), em que a moral não se
coloca, ou seja, as regras são seguidas, porém o indivíduo ainda não está
mobilizado pelas relações bem x mal e sim pelo sentido de hábito, de dever; (b)
heteronomia (crianças até 9, 10 anos de idade), em que a moral é = a
autoridade, ou seja, as regras não correpondem a um acordo mútuo firmado entre
os jogadores, mas sim como algo imposto pela tradição e, portanto, imutável;
(c) autonomia, corresponde ao último estágio do desenvolvimento da moral, em
que há a legitimação das regras e a criança pensa a moral pela reciprocidade,
quer seja o respeito a regras é entendido como decorrente de acordos mútuos
entre os jogadores, sendo que cada um deles consegue conceber a si próprio como
possível 'legislador' em regime de cooperação entre todos os membros do grupo.
Para Piaget, a própria moral pressupõe inteligência, haja
vista que as relações entre moral x inteligência têm a mesma lógica atribuída
às relações inteligência x linguagem. Quer dizer, a inteligência é uma condição
necessária, porém não suficiente ao desenvolvimento da moral. Nesse sentido, a
moralidade implica pensar o racional, em 3 dimensões: a) regras: que são
formulações verbais concretas, explícitas (como os 10 Mandamentos, por
exemplo); b) princípios: que representam o espírito das regras (amai-vos uns
aos outros, por exemplo); c) valores: que dão respostas aos deveres e aos
sentidos da vida, permitindo entender de onde são derivados os princípios das
regras a serem seguidas.
Assim sendo, as relações interindividuais que são regidas
por regras envolvem, por sua vez, relações de coação - que corresponde à noção
de dever; e de cooperação - que
pressupõe a noção de articulação de operações de dois ou mais sujeitos,
envolvendo não apenas a noção de 'dever' mas a de 'querer' fazer. Vemos,
portanto, que uma das peculiaridades do modelo piagetiano consiste em que o
papel das relações interindividuais no processo evolutivo do homem é focalizado
sob a perspectiva da ética (La Taille,
1992). Isso implica entender que "o desenvolvimento cognitivo é condição
necessária ao pleno exercício da cooperação, mas não condição suficiente, pois
uma postura ética deverá completar o quadro" (idem p. 21).
4) AS CONSEQÜÊNCIAS DO MODELO PIAGETIANO PARA A AÇÃO
PEDAGÓGICA
Como já foi mencionado na apresentação deste trabalho, a
teoria psicogenética de Piaget não tinha como objetivo principal propor uma
teoria de aprendizagem. A esse respeito, Coll (1992:172) faz a seguinte
observação: "ao que se sabe, ele [Piaget] nunca participou diretamente nem
coordenou uma pesquisa com objetivos pedagógicos". Não obstante esse fato,
de forma contraditória aos interesses previstos, portanto, o modelo piagetiano,
curiosamente, veio a se tornar uma das mais importantes diretrizes no campo da
aprendizagem escolar, por exemplo, nos USA,
na Europa e no Brasil, inclusive.
De acordo com Coll (op.cit.) as tentativas de aplicação da
teoria genética no campo da aprendizagem são numerosas e variadas, no entanto
os resultados práticos obtidos com tais aplicações não podem ser considerados
tão frutíferos. Uma das razões da difícil penetração da teoria genética no
âmbito da escola deve-se, principalmente, segundo o autor, "ao difícil
entendimento do seu conteúdo conceitual como pelos método de análise
formalizante que utiliza e pelo estilo às vezes 'hermético' que caracteriza as
publicações de Piaget" (idem p. 174). Coll (op.cit.) ressalta, também, que
a aplicação educacional da teoria genética tem como fatores complicadores,
entre outros: a) as dificuldades de ordem técnica, metodológicas e teóricas no
uso de provas operatórias como instrumento de diagnóstico psicopedagógico,
exigindo um alto grau de especialização e de prudência profissional, a fim de
se evitar os riscos de sérios erros; b)
a predominância no "como" ensinar coloca o objetivo do "o
quê" ensinar em segundo plano,
contrapondo-se, dessa forma, ao caráter fundamental de transmissão do
saber acumulado culturalmente que é uma função da instituição escolar, por ser
esta de caráter preeminentemente político-metodológico e não técnico como
tradicionalmente se procurou incutir nas idéias da sociedade; c) a parte social
da escola fica prejudicada uma vez que o raciocínio por trás da argumentação de
que a criança vai atingir o estágio operatório secundariza a noção do
desenvolvimento do pensamento crítico; d) a idéia básica do construtivismo
postulando que a atividade de organização e planificação da aquisição de
conhecimentos estão à cargo do aluno acaba por não dar conta de explicar o
caráter da intervenção por parte do professor; e) a idéia de que o indivíduo
apropria os conteúdos em conformidade
com o desenvolvimento das suas estruturas cognitivas estabelece o desafio da
descoberta do "grau ótimo de desequilíbrio", ou seja, o objeto a
conhecer não deve estar nem além nem
aquém da capacidade do aprendiz conhecedor.
Por outro lado, como contribuições contundentes da teoria
psicogenética podem ser citados, por exemplo: a) a possibilidade de estabelecer
objetivos educacionais uma vez que a teoria fornece parâmetros importantes
sobre o 'processo de pensamento da criança' relacionados aos estádios do
desenvolvimento; b) em oposição às visões de teorias behavioristas que
consideravam o erro como interferências negativas no processo de aprendizagem,
dentro da concepção cognitivista da teoria psicogenética, os erros passam a ser
entendidos como estratégias usadas pelo aluno na sua tentativa de aprendizagem
de novos conhecimentos (PCN, 1998); c) uma outra contribuição importante do
enfoque psicogenético foi lançar luz à questão dos diferentes estilos
individuais de aprendizagem; (PCN, 1998); entre outros.
Em resumo, conforme aponta Coll (1992), as relações entre
teoria psicogenética x educação, apesar dos complicadores decorrentes da
"dicotomia entre os aspectos estruturais e os aspectos funcionais da
explicação genética" (idem, p. 192) e da tendência dos projetos
privilegiarem, em grande parte, um reducionismo psicologizante em detrimento ao
social (aliás, motivo de caloroso debate
entre acadêmicos*), pode-se considerar que a teoria psicogenética trouxe
contribuições importantes ao campo da aprendizagem escolar.
5) CONSIDERAÇÕES FINAIS
A referência deste nosso estudo foi a teoria de Piaget cujas
proposições nucleares dão conta de que a compreensão do desenvolvimento humano
equivale à compreensão de como se dá o processo de constituição do pensamento
lógico-formal, matemático. Tal processo, que é explicado segundo o pressuposto
de que existe uma conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito
conhecedor e o objeto a conhecer, envolve mecanismos complexos e intrincados
que englobam aspectos que se entrelaçam e se complementam, tais como: o
processo de maturação do organismo, a experiência com objetos, a vivência
social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio.
Em face às discussões apresentadas no decorrer do trabalho,
cremos ser lícito concluir que as idéias de Piaget representam um salto
qualitativo na compreensão do desenvolvimento humano, na medida em que é
evidenciada uma tentativa de integração
entre o sujeito e o mundo que o circunda. Paradoxalmente, contudo - no
que pese a rejeição de Piaget pelo antagonismo das tendências objetivista e
subjetivista - o papel do meio no
funcionamento do indivíduo é relegado a um plano secundário, uma vez que
permanece, ainda, a predominância do indivíduo em detrimento das influências
que o meio exerce na construção do seu conhecimento.
6) REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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* Doutoranda em Lingüística Aplicada/IEL
* Ribeiro (2001,
2002); Oliveira ( 2001B); Luria (2001)
* Ver Becker (1994) e Silva (1993,)Fonte: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/d00005.htm
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